Antropólogos identificaram vários complexos culturais em Rondônia. Lévi-Strauss (1948) categorizou os povos da margem direita do Rio Guaporé como membros da “área cultural do Guaporé”, que se divide numa subárea Txapakura ao oeste e numa subárea Tupí ao leste. Esta classificação foi reexaminada na pesquisa da Denise Maldi, que realizou pesquisa etno-histórica na parte ocidental de Rondônia e em Mato Grosso desde a década de 1980. Maldi (1991) redefine uma parte da área Tupí do Lévi-Strauss como “O complexo cultural do marico”. Esse complexo cultural inclui não somente as culturas dos povos que falavam línguas tupí na região, mas também falantes das línguas Jabutí (Macro-Jê) e das línguas isoladas como Aikanã e Kwaza. O complexo é caracterizado por uma combinação dos traços seguintes:
- povos semi-nomádicos com agricultura de coivara complementado por caça e coleta.
- sociedades relativamente pequenas e igualitárias.
- subgrupos territoriais frequentemente têm nomes de animais.
- subgrupos territoriais podem forjar alianças com grupos vizinhos apesar de suas diferenças linguísticas.
- cultura espiritual envolve xamanismo e substâncias alucinógenas.
- cultura material é caracterizada pela elaboração de maricos, bolsas tecidas com fibra de tucum.
- consumo de chicha, uma bebida alcoólica fermentada com base de milho, taioba, macaxeira, patauá (Oenocarpus bataua) ou banana, amassado, fermentado e coado de maneira específica.
Apesar da grande diversidade linguística da margem direita do Rio Guaporé, esses traços culturais compartilhados apontam a uma longa história de contato interétnico entre grupos vizinhos nessa região. Esse contato interétnico não estava limitado somente a bacia de um só rio, mas também ocorreu entre grupos que habitavam cabeceiras de rios diferentes. Mesmo contribuindo a bacias hidrográficas diferentes, os rios Branco, Mekens, Tanarú e São Pedro têm cabeceiras oriundas da mesma área na Chapada dos Parecis. É provável que muitas semelhanças linguísticas compartilhadas entre as diferentes línguas da região podem ser explicadas por muitos séculos de contatos interétnicos ao invés de um vínculo genealógico entre elas (Crevels & van der Voort 2008).
Aikanã:
Os Aikanã são encontrados na literatura por vários nomes: Aikanã, Massaká, Kassupá, Huarí, Corumbiara, Mondé, Tubarão, e até outros. Entretanto, a autodenominação é Aikanã. Os Aikanã foram mencionados pela primeira vez em 1913 com o nome Uapurutá (reconhecido pelos Aikanã como Waikurutá) num mapa feito a mão pela Comissão Rondon durante sua visita ao povo Kepkiriwat (cf. Rondon & Faria 1948). Os Aikanã hoje confirmam que Waikurutá era o nome de um dos subgrupos da sua tribo. Aparentemente, Rondon considerou eles como um subgrupo dos Kepkiriwat, igual aos Charamein (Salamãi), devido ao relacionamento amistoso que mantiveram com os outros povos e o fato de eles terem culturas semelhantes.
A primeira testemunha ocular do povo Aikanã, com descrições, fotografias e uma amostra da sua língua, foi dada em 1914 pela etnógrafo e barão sueco Erland Nordenskiöld. No seu livro de 1915 Forskningar och Äventyr i Sydamerika (Investigações e Aventuras na América do Sul), ele descreve seu encontro com o povo “Huarí” que morava nas cabeceiras do Rio Corumbiara. O etnônimo Huarí foi dado aos Aikanã pelo povo Pauserna (hoje extinto). Os nomes pessoais e 82 palavras “Huarí” que foram registrados nos manuscritos do Nordenskiöld são praticamente idênticos aos aqueles usados pelos Aikanã hoje em dia.
Os Aikanã provavelmente já estavam em contato com a sociedade ocidental antes da visita do Nordenskiöld, mas as grandes mudanças culturais chegaram logo depois com a entrada do empresário de borracha Américo Casara (veja Albert 1964), que empregou eles na extração de caucho, ipecacuanha e outros produtos nativos da região. Há muitos indicadores que os Aikanã se davam bem com os não-indígenas. Eles forneceram serviços valiosos para as expedições da Comissão Rondon na primeira década do século XX, a Expedição Urucumacuan de 1940s, a construção da BR-364 em 1960s, e outras iniciativas governamentais até o presente. Hoje, os Aikanã estão participando nas expedições da FUNAI para proteger grupos de indígenas isolados nas regiões do Massaco, Omeré e Tanarú.
Desde 1973, a maioria dos Aikanã moram na Terra Indígena Tubarão-Latundê (demarcada em 1983), próxima à cidade Chupinguaia. O povo continuou extraído borracha até 1997 enquanto se sustentava na caça e na coivara. Em 1975 eles contataram uma família Aikanã isolada, liderada pelo Capitão Arui Uhune’i, que tinha se afastado dos outros Aikanã nos anos 1940 e morava numa parte remota da reserva. Com o reestabelecimento de contato com essa família, o conhecimento das práticas xamânicas para curar doenças foi reintroduzido na comunidade, junto com novos candidatos para casamentos. Em 1976, os Aikanã contataram um grupo desconhecido de povos Nambikwara Setentrional, os Latundê, numa área remota de serrado no interior do leste da reserva. Hoje os Aikanã moram nessa reserva juntos com membros do povo Kwaza, uma semi-falante de Salamãi e os últimos Latundê. Falantes da língua Aikanã também moram na Terra Indígena rio São Pedro a em cidades vizinhas como Chupinguaia e Vilhena, e na capital estadual, Porto Velho.
Em 2012 um grupo de Kassupá e Salamãi conseguiram assegurar a demarcação de uma pequena área indígena, antigamente propriedade do Ministério da Agricultura, que fica a cinco quilômetros de Porto Velho. Os membros desse grupo são descendentes dos Aikanã e Salamãi que foram transportados ao posto indígena Ricardo Franco no Rio Guaporé pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) nos anos 1940. Durante as próximas décadas muitos deles ficaram deslocados do posto, e no final dos anos 1960 um grupo deles se estabeleceu nos quarteis do Ministério da Agricultura fora de Porto Velho. A língua Aikanã ainda é falada entre eles por uma senhora idosa. A língua Salamãi é ainda lembrada por uma outra senhora idosa que mora em Porto Velho. Desde os meados dos anos 1990, esse grupo de Kassupá e Salamãi está tentando recuperar sua identidade étnica.
Um dos aspectos negativos do contato (direto e indireto) com o povo ocidental foi a dizimação dos Aikanã, especialmente por doenças contagiosas para as quais não possuíam resistência imunológica. Além disso, a perda das terras mais férteis e aculturação forçada pelos representantes da cultura ocidental (como madeireiros, missionários, funcionários do governo, etc.) resultou numa queda na transmissão da cultura indígena tradicional. Enquanto todas as gerações ainda aprendem a língua, a cultura indígena tradicional está desaparecendo sob pressão ecológica, cultural e religiosa da cultura ocidental.
Kwaza:
Os Kwaza são frequentemente encontrados na literatura pelo nome Koaiá. Atualmente a autodenominação Kwaza está sendo usada cada vez mais pelos povos indígenas e não-indígenas da região. Os Kwaza foram mencionados pela primeira vez em 1913 como os Coaiás num mapa desenhado a mão pela Comissão Rondon. A liderança Kepkiriwat que forneceu essa informação situou os Kwaza nos rios São Pedro e Taboca. Segundo relatos dos Nambikwara, eles eram canibais e eram temidos por todos os outros grupos indígenas da região.
O primeiro relato, embora fragmentário, do povo Kwaza, junto com fotografias e uma amostra da sua língua, resultou de um encontro entre Claude Lévi-Strauss e Luiz de Castro Faria e os ‘Mondé’ (que eram os Salamãi) em 1938. Aparentemente, algumas pessoas Kwaza estavam morando entre os Salamãi ou estavam os visitando. Nem Lévi-Strauss nem de Castro Faria os identificou como Kwaza, mas a lista de palavras do Lévi-Strauss, obtida de um menino oriundo do Rio São Pedro, deixa claro que eles realmente eram Kwaza. Além disso, é possível identificar uma mulher Kwaza com o nome Makyta em algumas das fotografias tomadas por de Castro Faria.
Durante a visita do Lévi-Strauss, os Kwaza provavelmente já estavam dizimados por doenças exógenas e, segundo os Aikanã, por guerra. Apesar de sua língua mostrar muitos traços que vieram de contato com outros grupos e de ter uma cultura que nitidamente pertence ao complexo cultural do marico, os Kwaza aparentemente não mantinham relações amistosas com seus vizinhos durante o século XX. Nos anos 1960, a tribo toda estava formada por uma ou duas famílias morando na foz do Rio Tanarú, e em 1973, eles se juntaram com os Aikanã para morar na Terra Indígena Tubarão-Latundê. Em 2000, uma reserva pequena foi demarcada para os Kwaza no seu território tradicional, a Terra Indígena Kwazá do Rio São Pedro. Os documentos antigos foram combinados com documentação e análise moderna da sua língua contribuíram às evidencias judiciais em favor à reivindicação das terras claim (van der Voort 1997, 2007a, 2008).
O último Kwaza que nasceu nos tempos tradicionais morreu em abril de 2008. Infelizmente, ele não conseguiu passar muito dos seus conhecimentos da cultura tradicional aos demais membros da sua tribo, e hoje, certas informações só podem ser obtidas através dos Aikanã idosos.
Referências:
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de Castro Faria, Luiz. 2001. Um outro olhar: Diário da expedição à Serra do Norte. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul.
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Rondon, Cândido Mariano da Silva. 1916. Conferencias realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, no Theatro Phenix do Rio de Janeiro sobre trabalhos da Expedição Roosevelt e da Commissão Telegráfica. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger.
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